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27 de maio de 2011

TORNANDO ESTRANHO: O Espelho Estilhaçado

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Simon Watney

Em 1935 o pintor inglês Paul Nash fez várias fotografias da paisagem local de Dorset nos arredores de Swanage onde então morava. Uma dessas mostra uma escada de três pedras ou degraus de concreto no meio de um campo de outro modo comum. Uma moita de arbustos frutíferos atrás dos degraus permite que se estime grosseiramente seus tamanhos – talvez dois pés de altura por cinco pés de comprimento. Sua escala, ao mesmo tempo, é monumental, no centro da imagem e visto de um pequeno ângulo. Porque deveria Nash, um pintor de reputação internacional, que também era extensivamente familiar com o fotografia européia contemporânea, escolher registrar essa cena particular?

Um ano depois ele escreveu em Country Life que ‘as paisagens que tenho em mente pertencem ao mundo que é visível para nós. Elas são invisíveis meramente porque não são percebidas’.[1] Existe, também, pelo menos uma descrição de Nash trabalhando nessa época ‘deitado sobre sua barriga … fazendo de um ângulo de um verme da terra … uma fotografia peculiar com distorção de alguns postes de cerca trabalhados pela metade.’[2]

Nesse capítulo eu desejo explorar algumas das condições que influenciaram tanto a escolha do sujeito quanto a ‘aparência’ real de muito da fotografia nos anos 1920 e 1930. Eu devo argumentar que há uma unidade substancial dos valores foto-estéticos atrás do trabalho de Nash e de muitos dos fotógrafos que ele admirou, incluindo Man Ray, Moholy-Nagy, e André Kertesz. Por todo esse período existiu um modelo coerente, embora localmente flexível, de prática fotográfica, da União Soviética até a França e os Estados Unidos, que não pode, adequadamente, ser explicado dentro das categorias estilísticas genéricas da ‘História da Arte’ tradicional, porque essa posição derivou de um amplo escopo de suposições relativas ao relacionamentos determinantes e determinadores entre ver, representar e conhecer, que por sua vez negavam a validade de qualquer distinção grosseira entre estética e política. Sua primeira e mais cogente teorização ocorreu na Rússia antes da primeira guerra mundial onde estava intimamente relacionado ao conceito da ostranenie, ou tornar estranho.
Ostranenie

O desejo declarado de Paul Nash de materializar com sua câmera ‘paisagens não vistas’ até o momento pressupõe uma noção de capacidade perceptiva defeituosa que ele, enquanto fotógrafo, deve corrigir. Nos anos 1890 Oscar Wilde escreveu da ‘beleza … para nós esmaecida pela bruma da familiaridade’.[3] Decerto, a noção de que a mente tem algo a ser protegido dos efeitos estultificantes do hábito era um lugar comum do pensamento Romântico: ‘O único hábito que dever ser permitido a seu filho adquirir’, escreveu Rousseau em Emile, ‘é aquele de não ter nenhum hábito.’ E em seu Essai Sur La Peinture de 1776, Diderot escreveu, em resposta às convenções banais e arcaicas da beleza que moldaram tanto da arte contemporânea, que ‘as artes da imitação necessitam de algo selvagem, primitivo, surpreendente. … Em primeiro lugar me tocar, me surpreender … fazer-me tremer, chorar, estremecer, me ultrajar; posteriormente você pode agradar meus olhos.’[4] Mas o Romantismo só podia entender a tendência de todos os sistemas simbólicos a ossificar em relação ao poder e valores que eles simbolizavam, em termos de uma distinção putativa entre uma arte que é baseada em convenções e uma que é livre de convenções. Foi essa última visão de uma arte que pode evitar os códigos de classe e nacionalismo, encarnados na cultura clássica desde o Renascimento, que informou o trabalho de tantos artistas e escritores românticos. Assim, na tradição do pensamento de Rousseau, toda cultura era vista na imagem de uma prisão, como uma série de constrangimentos e limitações. Portanto os românticos se voltaram contra o hábito em um sentido libertário, do mesmo modo como se voltaram contra uma fixidez dos gêneros na pintura, e aquela visão hierárquica do mundo que eles refletiram. Em um extremo isso podia levar a um ataque à própria linguagem, entendida como o próprio modelo do processo pelo qual o pensamento e a comunicação eram supostamente traídos e deformados pelas ‘convenções’.

A cultura Romântica só podia postular uma oposição entre o passado, visto como uma barreira esclerótica ao significado, e algum tipo de auto-expressão espontaneamente livre, sancionada por uma visão pré-Saussuriana da linguagem e da representação, que rejeitava expressamente qualquer análise adicional da natureza das práticas significantes. Foi também a tendência dessa posição de tratar todas as questões do ‘pensamento’ e da percepção de um modo extremamente abstraído socialmente. Nesse sentido o Romantismo dirigiu suas diversas atenções para um público humano ideal, monolítico e supostamente universal. Essa era uma conseqüência direta de igualar o conhecimento à visão, de tal modo que as deficiências ou variações de crença só pudessem ser explicadas em termos de deficiências ou variações no plano da própria visão. A metáfora problemática do ‘olho’ persiste nas teorias modernas da ideologia.

Uma das versões mais familiares da metáfora ocorre amplamente por todo o século XIX e era um dos recursos do esteticismo. Como Wordsworth e Goethe antes deles, Monet, Cézanne, Pissarro e Van Gogh, todos descreveram a idéia de uma visão da infância pura não diferenciada ‘corrompida’ pela experiência posterior, freqüentemente igualada com ‘convenções’. Todos esses artistas escreveram sobre um sonho comum de perda de suas visões adultas para poder ter miraculosamente restaurada a visão prístina da infância. Gauguin assumiu essa fantasia/proposição ao limite de suas implicações sociais tácitas. Não era apenas o olho que estava corrompido, era a própria cultura européia. A visão européia. Daí sua procura atávica por uma arte e uma sociedade remota no tempo ou na distância daquela de seu próprio período e sociedade. O Romantismo tendeu ou para olhar para trás para uma série de Eras Douradas imaginárias, ou adiante para exóticas e igualmente imaginárias Arcádias.

Em A Ideologia Alemã Marx nos provê uma versão mais francamente política da mesma parábola. Ali ele explora os modos pelos quais o ‘senso comum’ de grupos particulares na sociedade é construído, argumentando que é sempre a tarefa de qualquer classe dirigente estabelecer suas próprias crenças e valores como se eles fossem ‘leis eternas’.[5] O próprio problema de Marx era como re-pensar nossas idéias a respeito da natureza humana, como representar a consciência como uma ‘montagem de relações sociais, ao invés de uma ‘essência’ a-historicamente dada, e como relacionar essa imagem ao resto da vida material. Uma de suas primeiras soluções a esse problema envolveu o conceito de ‘falsa consciência’, um conceito que foi instantaneamente reconhecível dentro das estruturas do pensamento Romântico. O capitalismo é percebido como criando as condições que obscurecem e mistificam nossa consciência de nós mesmos e nossas relações com o mundo de tal modo que não podemos perceber corretamente nessas condições objetivas de desigualdade e exploração, que são incompreendidas como se fossem ‘naturais’, e portanto imutáveis.

Se isso levou a uma nova ênfase radicalmente nova sobre os modos pelos quais a cultura legitima formas particulares de sociedade, e podem por sua vez serem empregadas para clareá-las e ‘des-mistificá-las’, isso também tendeu a preservar a ênfase antiga de uma noção socialmente abstraída da percepção. Essas duas amplas tendências do pensamento do final do século XIX – o ideal estético da visão pura versus a visão corrupta e a imagem marxista da verdadeira consciência versus a falsa consciência – funcionaram juntas para fornecer uma matriz poderosa para idéias relativas aos modos pelos quais as representações do mundo podem moldar a consciência e, talvez, mudá-lo.

Entretanto, foi na Rússia pré-revolucionária que um velho sonho Romântico de uma nova cultura por uma nova sociedade, uma nova linguagem livre das convenções para um novo tipo de sujeito humano completamente não-convencional, foi parcialmente realizado. O Futurismo russo não foi uma tendência, ou uma escola, ou um movimento unitário. Ao contrário, foi uma série de amplas e mutantes alianças entre um grande número de vanguardas transientes, todas as quais estavam alinhadas em torno de um conjunto dinâmico não obstante coerente de idéias, termos e práticas. Os vários debates relativos aos momentos originais do Futurismo russo apenas apontam para a futilidade de abordar esse sujeito com a metodologia positivista da História da Arte, e revela um engano básico de seus objetivos e de sua natureza. Como o movimento Surrealista, com o qual tinha muito em comum, o Futurismo russo derivou de uma teoria da linguagem que estava intimamente conectada a um modelo de história. Isso foi mais claramente exemplificado pelas tentativas do poeta Khlebnikov de construir uma nova linguagem russa, uma tabula rasa fonética que seria a precondição para a emergência do ‘budetlyane’, o Homem do Futuro, o novo russo.

O Futurismo russo descobriu seu momentum ao longo da linha precisa de sua poética. Não obstante, diferentemente do Dadaísmo ou do Futurismo italiano, ele envolvia uma poética que estava profundamente engajada com a política revolucionária. Daí as objeções do escritor russo Sergey Tretyakov e outros aos deslocamentos fonéticos arbitrários de Marinetti que, eles argüíram, meramente arrastaram a linguagem para sons sem sentido, incapazes de reconstruir uma nova linguagem como era percebido ser necessário para a regeneração da sociedade russa. Esse era o significado da visão da cultura de Mayakowsky como a ‘terceira revolução’. A arte não era simplesmente para refletir a vida: ela devia ser reativa dentro e sobre ela.

O Futurismo russo desenvolveu várias estratégias para significar sua ruptura intencionada com a linguagem e as instituições da sociedade burguesa. Essas incluíam cortar e justapor palavras e imagens, e a criação de qualquer número de dialetos locais para libertar o espírito do ‘budetlyane’, como Ariel da árvore. O ano de 1913 foi o período da arte das ruas, experimentos com mídia mista, e qualquer número de inovação artística muito remanescente do ‘Acusação ao Real’ de Andre Breton, na França, cerca de duas décadas depois. Como escreveu retrospectivamente Viktor Shklovsky em 1940, ‘na arte daquele período a pintura e a literatura ainda não tinham sido separadas. … O poeta testa o mundo e o coloca de cabeça para baixo, ele vai para as ruas, para a praça, que desajeitadamente chama de um “pandeiro”.[6] É importante enfatizar que os Futuristas russos não percebiam nenhuma descontinuidade entre seus estratagemas para chamar a atenção, teatro de rua, estilos de vida, livros, pinturas, filmes e suas políticas. Decerto, pode-se entender o Futurismo russo como um ataque contínuo e bem-humorado a todas as definições rígidas e limitadas do escopo do político. Daí a crítica do poeta Kruchenykh ao interminável ‘ra-ta-ta-ta’ dos Futuristas italianos, que é irreverentemente comparado com o pensamento do autor de teatro Simbolista Maeterlink, a quem Kruchenykh reivindicou, que ‘a porta repetida uma centena de vezes se iguala à Revelação!’[7]

O centro de toda essa experimentação não era, entretanto, privatizado: essa não era meramente outra vanguarda modernista pioneira confundindo os museus e as galerias de arte com o coração do capitalismo. Os papéis dessas instituições não foram negligenciados. Nem foram superestimados. No centro de toda essa atividade reside um desejo apaixonado e claramente motivado de preparar o terreno para um novo tipo de consciência. Para esse fim se dedicou um exército de escritores e artistas cujas atividades iam da performance arte de Mayakowsky às visões de ficção científica de Zhlebnikov de um universo totalmente novo. Emergiu então ali um consenso de opinião sobre o sujeito do ‘Zaum’, um termo que se referia à idéia de uma linguagem anti-propositiva derivado da fonética russa, ‘trans-racional’, aspirando às condições de uma arte universal, que poderia emergir, como o colocou Khlebnikov, ‘organicamente, não artificialmente como o Esperanto’.[8] Intimamente conectado ao conceito do Zaum estava o conceito do ‘Sdvig’, uma teoria paralela que cobria as possibilidades de associações lingüísticas e pictóricas, como exemplificado por muitas das pinturas de Malevich em torno de 1913-14.[9]

Assim, Shklovsky podia escrever em 1914 que, enquanto ‘a velha arte já tinha morrido, a nova ainda não havia nascido; nós perdemos a consciência do mundo, nós somos como um violinista que cessou de sentir o arco e as cordas. … Apenas a criação de novas formas de arte pode restaurar a sensação do mundo para o homem.’[10] Para os olhos de Shklovsky, a língua russa era tão boa quanto morta, apenas as imagens ainda permaneciam vivas. Ele afinal tinha começado sua carreira como um escultor. Daí a necessidade desse novo tipo de linguagem (não diferente da interpretação da língua chinesa de Ezra Pound, na qual todo significado era supostamente analógico e ‘ideogrâmico’),[11] uma linguagem que devia restaurar algum vínculo vital entre o povo que , se acreditava, tinha sido erodido. Nessa teoria da linguagem são as próprias palavras que são vistas como tendo sido estragadas como moeda simbólica, como se desgastadas pelo uso. ‘O antigos diamantes das palavras recuperam seus brilhos perdidos,’ ele comenta, ‘a criação de uma nova linguagem “concisa” é necessária, dirigida para a visão e não para o reconhecimento’, concluindo que ‘não serão os teóricos mas os artistas que irão caminhar por esses caminhos à frente de todos os demais.’[12] Em outras palavras, a Futurismidade – as práticas do Futurismo russo – é entendida como eficaz no plano da própria percepção, vista como a primeira condicionante do conhecimento. No lugar do ‘reconhecimento’ mecânico, os Homens do Futuro irão ver. Os escritores de um manifesto intitulado Sadok Sudei, de 1913, descreveram como tinham começado ‘a incorporar significados às palavras de acordo com suas características gráficas e fônicas’. Esse desejo de, de algum modo, estabilizar a linguagem, de forçá-la de volta à algumas relações imaginadas como as coisas reais, é totalmente característico do Futurismo russo, como era a facilidade com a qual as teorias relativas às palavras podiam ser aplicadas às imagens.

Em alguns modos Shklovsky manteve uma posição que tinha certos paralelos com a estética européia contemporânea, por exemplo os ataques de Roger Fry aos aspectos ‘costumeiros’ do Naturalismo em seu prefácio ao Catalogue of the Second Post Impressionist Exhibition, mostrada em Londres em 1912, onde propôs a noção de que pintores como Picasso e Matisse ‘buscam não a ilusão, mas a realidade’.[13] Em 1914 isso tinha se tornado uma doutrina fundamental da crítica do Modernismo pioneiro, e é interessante observar como os Futuristas russos responderam ao elitismo de seus contemporâneos europeus, que argumentavam que a capacidade para ver, enquanto oposta ao ‘mero’ reconhecimento, era o dom inato de uma minoria naturalmente privilegiada, com uma ênfase constante no papel socialmente funcional da arte na sociedade. Europeus como Fry, e Apollinaire em Paris, distinguiam entre diferentes tipos de ver, mas apenas baseado em uma crença em algum domínio transcendente de valor estético que era acreditado ser bloqueado pela visão comum. Isso dificilmente era importante se a capacidade de ir além da ‘visão comum’ era inata! Não obstante, o Modernismo europeu era sentido como possuindo algum tipo de efeito educacional e benéfico sobre sua audiência, mesmo que apenas em seu encorajamento da ‘visão desinteressada’ necessária para perceber a dimensão metafísica da ‘forma pura’.[14] De um modo muito semelhante os pintores russos entenderam o Cubismo como um ataque ao Realismo convencional, em termos das teorias do Zaum e do Sdvig do significado associado, assim os críticos russos tendiam a dirigir a estética ocidental para questões do significado social mais amplo dos sistemas representativos.

Em um poema escrito em 1903 Kruchenykh descreveu aqueles ‘que caíram debaixo das cortinas úmidas cobrindo as janelas [que] se perderam em meio dos traços dos fugitivos [então] levados a um lar estranho onde era familiar’.[15] Esse tipo de justaposicionamento do estranho e do familiar era central às estratégias que foram desenvolvidas pelas estéticas Zaum e Sdvig. Todas envolviam a noção de desorientação em uma forma ou outra, uma vez que o Futurismo russo era dedicado a surpreender ou chocar seu público fora de sua visão habitual do mundo, fora de sua história. O hábito era entendido muito próximo ao modo como Samuel Beckett o descreveu em 1931 como ‘um compromisso efetuado entre o indivíduo e seu ambiente … a garantia de uma inviolabilidade monótona … o balastro que prende o cão ao seu vômito’.[16] Como e porque os próprios Futuristas romperam com o hábito nunca é tornado claro. Shklovsky, por exemplo, estava contente em descrever o processo pelo qual a percepção se tornava habituada, se torna não mais que reflexos mecânicos de uma realidade aparentemente dada. ‘Nós vemos o objeto como se ele estivesse envolto em um saco. Nós sabemos o que é por sua configuração, mas nós vemos apenas sua silhueta.’[17] Habitualização é entendida por Shklovsky como um efeito das percepções embrutecidas, percepções que foram enuviadas pela rotina, pela cultura. Sua análise é então muito mais preocupada com as dimensões ideológicas da vida diária do que com o maquinário de classe, sexualidade ou modos de produção. Daí o remédio que previra residir dentro do território tradicional, e discurso, da arte:

A arte existe para nos ajudar a recuperar a sensação da vida, para tornar a pedra pedrenta. O fim da arte é prover uma sensação do objeto como visto, não como é reconhecido. A técnica de arte é a de tornar as coisas ‘não-familiares’, tornar obscuras as formas, de modo a aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato da percepção na arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado. Na arte, é nossa experiência do processo de construção que conta, e não o produto acabado.[18]

Foi desse modo que a estética do final do século XIX foi recuperada e redirecionada para rumos que nem os Simbolistas europeus nem os russos podiam ter imaginado. A distinção entre ver e o ‘mero’ reconhecimento, que era central dentro do Pós-Impressionismo e no princípio da estética Modernista, foi desviada de um impulso metafísico para a análise de formas estéticas natas, e para fora na direção das relações complexas entre artista e público, e os valores que são ali negociados.

Na teorização de Shklovsky a ‘ostranenie’, ou as estratégias para tornar estranho, ainda está firmemente enraizada em uma dimensão estética, que seria fortemente reforçada por todo o corpo da crítica literária Formalista. Entretanto, ao mesmo tempo, o peso atribuído à natureza social da percepção, suas características e conseqüências socialmente aprendidas, ameaçavam a tranqüilidade de qualquer tentativa de propor uma distinção absoluta entre modos artísticos e cotidianos de percepção e representação. Por todos os seus claros débitos a Cézanne e aos Cubistas, as idéias de Shklovsky foram imediatamente aplicáveis a um escopo mais amplo de práticas sociais, em particular filmes e, é claro, fotografia. A noção de restaurar nossa visão a algum tipo de pureza edênica era particularmente relevante ao meio fotográfico, que o próprio Shklovsky, juntamente com seus amigos Mayakowsky e Tretyakov estavam profundamente envolvidos com, particularmente após a emergência do movimento Construtivista em, 1917, ele próprio uma resposta ao esteticismo do Futurismo russo sob a luz da Revolução. Não obstante, a teoria do tornar estranho permaneceu central aos desenvolvimentos subseqüentes da arte soviética. Nesse sentido seria engano imaginar qualquer tipo de ruptura absoluta no período a partir de 1910 em diante. Como observou Tretyakov em 1923, o Futurismo russo tinha sido sempre uma tendência sócio-estética, e, referindo-se a um manifesto notório produzido por Kruchenykh, Mayakowsky e outros, em 1912[19] observou que ‘um tapa na face do gosto estético era apenas um momento de um tapa geral na face da rotina diária congelada em suas formas’.[20] Ele prossegue para explicar que os Futuristas russos não estavam simplesmente produzindo ainda outro sistema de dogmatismo estético fechado, mas ‘estabelecendo a psique humana como um todo em comoção, incitando nessa psique, no grau máximo possível, a elasticidade criativa, até uma ruptura com todos os cânones e com qualquer crença em valores absolutos’. Desse modo a arte pode ser redefinida como um modo de produção particular ao invés de uma duplicação fetichicizada dos valores burgueses. Essa foi a posição sustentada pelos Produtivistas, um grupo formado no início dos anos 1920 por Mayakowsky, Shklovsky, Tretyakov e muitos outros artistas e fotógrafos incluindo Alexander Rodchenko. Seu porta-voz não oficial era o periódico Lef fundado em 1923.[21]

No primeiro número da Lef Tretyakov argumentou que sem a Revolução Russa de 1917 o Futurismo ‘nunca teria levado seu moldar da personalidade humana para além de variedades anarquistas contra indivíduos isolados’. A arte Produtivista buscava as aspectos agitadores do Futurismo na direção da reorganização material da psique humana, a criação do budetlyane. Para assim fazê-lo ela buscava as estratégias da ‘interrupção estética’ inicialmente praticadas por Khlebnikov e outros.

A tarefa do poeta agora ‘é tornar completamente necessária a linguagem viva de seu tempo’, uma tarefa que ‘pode parecer utópica, porque significa: arte para todos – não como um produto para consumo, mas como uma capacidade produtiva’.[22] Aqui o antigo sonho Romântico de uma linguagem universal iria finalmente ser realizado em termos políticos, através de um violento ataque total contra o costumeiro que estava implícito no conceito de desfamiliarização. Isso exigia uma luta cultural pela ‘ estrutura determinada de experiências, sentimentos e o caráter da ação humana … as formas fixas das rotinas diárias’. A arte Produtivista se propunha a sabotar ‘a estrutura de sentimentos e ações que se tornaram automatizadas em uma base socioeconômica por suas repetições, que se tornam hábito e possui uma tremenda tenacidade … a rotina diária internalizada que de modo tão vigoroso impede as pessoas de prosseguir com as tarefas impostas pela mudança nas relações de produção’. Tretyakov prossegue para descrever os modos pelos quais a vida diária cria necessidades que são fetichistas, desconectadas da utilidade de seus objetos, necessidades e que em última instância escraviza. A arte, como a religião, é rejeitada como ‘uma mentira’.[23]

Nesse ponto tornar estranho se torna completamente identificado com a luta revolucionária, uma teoria da cultura que foi implacavelmente hostil aos valores hegemônicos da sociedade capitalista, particularmente enquanto investidos na estética tradicional. Em outras palavras, ele foi reformulado em termos marxistas. Infelizmente, Tretyakov aqui tropeça no moralismo, lamentando o fato de que as pessoas não podem nem mesmo parecer descer a rua de um modo ‘racional’ sem tropeçar uns nos outros! As origens libertárias Românticas do termos foram suplantadas por uma nova teoria monolítica da prática universal ‘correta’ e, por extensão, da natureza humana ‘correta’, que era tão inflexível quanto o dogmatismo burguês que a ‘ostranenie’ se propusera a questionar. Longe de ser um agente da capacidade produtiva livre, o Homem do Futuro emerge dessas páginas como o ‘bom cidadão’ que não pensa, desejado por qualquer regime totalitário.

Osip Brik, um membro fundador de ambos grupos ligados à Opoyaz[24] e à Lef, em 1926, descreveu a situação da fotografia russa em termos que eram igualmente aplicáveis à fotografia da Europa e dos Estados Unidos. Os fotógrafos são criticados por imitar a aparência de pinturas a óleo para adquirir o status social atado ao conceito de artista. Como um produtivista típico, Brik rejeitou toda a filosofia da arte à qual os fotógrafos aspiravam: ‘ao lutar contra a distorção estética da natureza o fotógrafo adquire seu direito ao reconhecimento social, e não ao dolorosa e inutilmente lutar para imitar os modelos estranhos à fotografia’.[25] Brik argumentou que ‘os melhores combatentes do esteticismo pinturesco são antigos pintores’, e recomendou atenção especial para Rodchenko.

O próprio Rodchenko descreveu as limitações do Pictorialismo, argumentando que, por exemplo, ‘a fotografia de uma fábrica recentemente construída não deve ser a fotografia do prédio’, e defende experimentação repetida na tomada das fotos de uma variedade de ângulos’.[26] Sob a influência de Brik, Rodchenko procurou estabelecer um programa de leis fotográficas específicas que deve liberar o espectador de seus preconceitos. Daí sua preocupação com a ‘qualidade do ângulo’ na fotografia em sua tentativa de formular ‘uma nova estética que pode expressar com fotografias a paixão e o patos de nossa nova realidade socialista’.[27] Se, como argumentou, a pintura estava morrendo, então a verdadeira batalha reside dentro da própria fotografia, contra os usos Pictorialistas do meio, e aquela forte crença de que as fotografias simplesmente refletem uma dada realidade. Isso estava diretamente alinhado com a preocupação de Tretyakov com a natureza ‘tenaz’ da consciência ‘automatizada’ e os modos pelos quais isso é reforçado pelo meio fotográfico. O mesmo argumento foi também amplamente sustentado em relação à prática contemporânea do cinema.[28] A fotografia não devia simplesmente cronicar a nova era. Deviam ser encontradas novas formas de representação que pudessem questionar os modos pelos quais vemos o mundo, argumentando que as questões de sujeito não devem ser abstraídas daquelas de significação formal. Daí suas várias estratégias para produzir imagens ‘difíceis’ que postergam o ato geralmente espontâneo de reconhecimento. Seu ponto era ‘mostrar o mundo de todos os pontos de vista e ensinar a habilidade de vê-lo de todos os lados.’[29] (Veja, por exemplo, a Figura 7.1)

É importante, entretanto, distinguir entre as fotomontagens de Rodchenko e o resto de sua prática fotográfica, do mesmo modo como é importante distinguir entre a estética da fotomontagem como um todo e aquelas de tornar estranho. Suas montagens de 1923 ilustrando o poema About This, de Mayakowsky, estão de fato intimamente ajustadas ao texto de um modo razoavelmente tradicional. Ao mesmo tempo, a aparência fragmentada das ilustrações individuais revelam o débito estilístico de Rodchenko às fotomontagens do dadaísmo alemão contemporâneo, das quais Mayakowsky e Brik tinham conhecimento de primeira mão.[30] O poder de choque das imagens que foram construídas de várias fontes fotográficas diferentes era indubitavelmente coerente dentro da estrutura do pensamento Futurista russo. Mas a fotomontagem tinha de viajar para a União Soviética para assumir a ideologia do tornar estranho que Heartfield, entre outros, tomou emprestado dos membros do grupo Lef durante a década de 1920. Em outras palavras, as origens propagandistas da fotomontagem podem ter assumido a posição teórica geral implicada pelo tornar estranho durante o curso de aproximadamente uma década. Mas a fotomontagem não exauriu as possibilidades daquela posição geral. A extensão eventual do conceito de fotomontagem, de uma técnica específica de recortar fotografias, para uma teoria geral da fotografia, como descrita por Heartfield, é inimaginável sem o input do pensamento e da prática russa.[31] Tão cedo quanto em 1915 Rodchenko tinha descrito seu desejo de mostrar objetos familiares de modos não familiares, através de tais ferramentas Swiftianas como close-ups extremos, e assim por diante. Tais idéias apenas informaram a prática da fotomontagem na Alemanha através da agência do grupo Lef. A teoria de tornar estranho foi então um elemento crucial na transição da visão cômica do Dadaísmo, de um mundo que é tão incompreensível quanto selvagem, para um ponto de vista analítico marxista.

Assim a fotomontagem se tornou uma das muitas técnicas pelas quais ‘um fotógrafo que deseja dominar o significado social de um fenômeno irá procurar métodos para sublinhar a característica essencial, assim corrigindo a objetividade da câmera, com relação à indiferença entre o justo e o injusto’.[32] Tão depois quanto em 1936 Tretyakov não via o tornar estranho como um desafio à ideologia da própria objetividade.

Não obstante, a teoria da ‘ostranenie’ continuou a causar impacto sentido durante os anos 1920 e 1930 na Alemanha. Isso está muito claro, mais do que em qualquer outro local, na celebrada descrição de Walter Benjamin da reivindicação de Brecht de que ‘menos do que em qualquer outra época, uma simples reprodução da realidade nos informa algo sobre a realidade. A realidade propriamente escorregou para o funcional. A reificação das relações humanas, digamos, a fábrica, não mais revela aqueles relacionamentos. Portanto, algo realmente tem de ser construído, algo artificial, algo arranjado.’[33] Esse é precisamente o raciocínio por trás das fotografias seriais de Rodchenko do final dos anos 1920 nas quais toda a seqüência de um evento é mostrada em uma série de imagens relacionadas. O processo de produção oculto do próprio jornal que alguém segura nas mãos é revelado em um tal exemplo.[34] A fotografia comercial de Rodchenko estava firmemente embasada na convicção de que a fotografia não devia ser cúmplice da tendência de reproduzir objetos – pessoas, ‘As Notícias’, mobiliário, arquitetura – como se elas tivessem de algum modo gerado suas existências sem a agência ou o interesse humano.

A teoria do tornar estranho forneceu a Brecht a matéria-prima da qual iria desenvolver todas as suas diversas estratégias na direção daquele ‘conhecimento adquirido através da dúvida’ sobre o qual ele falou em Galileo.[35] Toda a complexa problemática do ver devia ser propriamente entendida nesse contexto.[36] Brecht deve ter sentido uma grande responsabilidade por seu antigo amigo após Tretyakov ter sido ‘expurgado’ em 1937. Em 1939 ele escreveu que ‘o mais clichê e diário dos incidentes são despidos de suas monotonias quando representados como bem especiais. O público não está mais buscando refúgio do dia de hoje na história: o dia de hoje se torna história.’[37] Suas palavras sustentam um discurso e um escopo de práticas que teriam sido perfeitamente familiares para Khlebnikov e Mayakowsky cerca de trinta anos antes. Na Alemanha dos anos 1930 esse discurso podia ser usado para fins do realismo socialista para criar um ‘olho proletário’ que deve se tornar consciente do ‘mundo do trabalhador que é invisível para a burguesia, e infelizmente também para a maioria do proletariado’.[38] Ela podia ainda validar a ampla posição defendida por Franz Roh, de que ‘o homem na vagareza da vida convencional geralmente concebe senão uma impressão convencional, e raramente experimenta realmente o objeto’.[39] Mas nesse ponto a teoria da desfamiliarização tinha sido apropriada de tal modo que suas implicações políticas haviam sido totalmente dissolvidas. A polêmica de Roh é dedicada contra a tradição Pictorialista local exemplificada pela antologia de 1928, de A. Renger-Patzsch, The World is Beautiful. A própria resposta de Roh foi a Photo-Eye, uma antologia de 1928, sobre a qual escreveu ‘nosso livro não pretende apenas dizer “o mundo é belo”, mas também: o mundo é excitante, cruel, e estranho’.[40]

A coleção Photo-Eye inicia com uma imagem de uma loja de espartilhos em Paris feita por Eugene Atget no início do século. Uma vitrina estritamente francesa é vista repleta com manequins sem cabeça e desumanamente espartilhados, enquanto outro manequim está colocado na rua. Em 1931 Walter Benjamin escreveu que Atget ‘desinfeta’ a atmosfera tradicional da fotografia de retrato, mostrando os arredores de Paris despopulados preparando, assim, a cena para uma escola surrealista de fotografia que deve explorar ‘um estranhamento honroso entre o homem e seus arredores’.[41] A maioria da antologia da Photo-Eye é dominada por fotografias que ostensivamente exploram a estética da desfamiliarização, de paisagens aéreas, raios-X de flores e da bolsa de uma mulher, imagens negativas, fotos médicas e assim por diante. O que deve ser observado, entretanto, é que enquanto Roh sustentou uma teoria da percepção que contrastava visões ‘convencionais’ do mundo com a ‘experiência real’, isso não estava conectado a nenhuma visão mais ampla dos papéis sociais da fotografia. Tornar estranho tinha sido anexado como um estilo, um ‘olhar’ às fotografias que era resolutamente ‘moderno’, mas ao mesmo tempo inocente de qualquer teoria da ideologia.

Nesse sentido o fotógrafo húngaro Moholy-Nagy representou uma posição poderosa na fotografia européia, dirigindo sua posição a partir de um modelo Construtivista ao invés de Produtivista que, com sua ênfase semi-mística nos materiais,[42] depositou uma forte ênfase nas inadequações físicas do olho humano (veja a Figura 7.2, por exemplo). Tornar estranho assim passou para o território de uma teoria do conhecimento mais rigorosamente orientada pela ciência que considerava a tecnologia como uma extensão direta da visão ‘natural’, de um modo que retorna a Vertov e Rodchenko bem como adiante para o determinismo tecnológico de Marshal McLuhan nos anos 1960. Enquanto fotógrafos como Roh e Moholy-Nagy adaptavam o tornar estranho aos imperativos do Modernismo europeu, Walter Benjamin argumentou que toda fotografia, construtivista ou não, que falhasse em explorar os relacionamentos entre imagens e a linguagem escrita ‘deve permanecer aprisionada no aproximado’.[43] O que Walter Benjamin buscou foi uma prática fotográfica que não ‘paralisasse os mecanismos associativos do observador’, uma prática que iria efetivamente transformar a fotografia em uma forma de literatura, experiência espontânea em textos contemplativos.[44] Foi nessa direção que os imperativos sóciopolíticos da formulação da ostranenie de Shklovsky/Tretyakov veio, de modo crescente, a informar a tendência da fotomontagem na fotografia alemã, com sua ênfase cuidadosa nas relações entre a imagem e a linguagem no contexto de uma orientação comunista específica. Como observou Stanley Mitchell, foi desse modo que Benjamin ‘veio a considerar a montagem, isto é, a habilidade de capturar o infinito, conexões súbitas ou subterrâneas de dessemelhantes, como o princípio constitutivos principal da imaginação artística na era da tecnologia’.[45] Desse ponto de vista a imagem simples podia ser entendida como congenitamente reacionária, independente do ângulo de tomada ou de qualquer outra estratégia desfamiliarizadora que venha a ser empregada. Isso era sempre um problema no pensamento Modernista, com sua rejeição casual do ‘Naturalismo’, como se todas as artes miméticas carregassem os mesmos valores para ou sobre seus sítios e funções.

Foi apenas no movimento Surrealista que Benjamin encontrou um equivalente viável à teoria da montagem. Porque ele reconheceu que o Surrealismo era acima de tudo uma teoria da linguagem, e uma teoria intimamente conectada a um engajamento dinâmico com a mudança social, com a revolução. Porque o Surrealismo havia tomado as granadas do Romantismo, as metáforas da loucura e do sono e da paixão, e as redirecionou para o próprio coração do esteticismo modernista. Não obstante a fotografia desfrutou senão de um uma posição tênue no firmamento da prática surrealista. O próprio Benjamin estava bastante ciente da ‘concepção inadequada, não-dialética da natureza da intoxicação’, que levou tantos dos surrealistas a perceber ‘o cotidiano como impenetrável, o impenetrável como cotidiano’.[46] Daí a desconsideração última de Benjamin da estética da surpresa que ele percebeu como ‘misturada com vários preconceitos Românticos perniciosos’.[47]

A tradição da fotografia européia acomodou gradualmente as estratégias da desfamiliarização em um estilo, um novo Pictorialismo, consistindo amplamente de sujeito e técnicas de câmera que eram simplesmente não familiares às preconcepções de um estreito público burguês que incluía a maioria dos próprios fotógrafos. Tornar estranho se dissolveu na necessidade Modernista geral de inovação estilística constante, percebida como um fim em si mesma. Ele se tornou esteticizado. O Surrealismo, entretanto, continuou muito mais intimamente preocupado com a idéia de desorientação perceptiva dramática, ligado à luta para liberar alguma ‘surrealidade’ essencial e universal supostamente reprimida pela sociedade burguesa. Foi esse senso de inovação social que os distinguiu decisivamente de seus contemporâneos europeus, e que, em retrospecto, é tão parecido com a geração pioneira dos Futuristas russos com quem compartilharam a metáfora central do artista como poeta que é, acima de tudo, um vedor. Nesse sentido o Surrealismo envolveu uma atitude particular para com a visão, uma interrogação do processo real de ver que não era concebido simplesmente como um mecanismo receptor passivo ou neutro, mas como uma troca entre sujeito e objeto. Nesse sentido, como em muitos outros, eles foram muito influenciados por Freud. Daí sua recuperação da figura Romântica do artista como o transmissor (bearer) de verdades universais, verdades que só podiam ser reveladas através de seus ataques incessantes contra o que André Breton descreveu como ‘a besta louca da convenção’.[48] Foi nesses termos que Breton e seus amigos descobriram e admiraram o trabalho de Atget, que parecia revelar uma Paris que se ajustava admiravelmente às suas visões de uma arte que poria o espectador para fora de sua profundidade – para fora de sua consciência habituada.

Não obstante a fotografia mostrou ser geralmente resistente à imaginação surrealista, e as fotografias de Man Ray tem muito mais a ver com uma estética Modernista derivada da pintura Cubista do que com o Surrealismo. Suas fotos Surrealistas, como aquelas de Brandt, Brassai, Kertesz e outros, são pouco mais do que ilustrações (freqüentemente muito literais) da iconografia corrente ou do gosto surrealista em um momento particular, indo de manequins e carretilhas para algodão, tesouras e escultura clássica. Para os Surrealistas qualquer coisa podia ser tornada repleta de significância pela prática direta de removê-la de seu ambiente familiar e recontextualizá-la. Essa era a tarefa da maioria da fotografia surrealista. Apenas ocasionalmente, como nas monstruosas ampliações de dedos e ponta de dedos de Boiffard (veja a Figura 7.3, por exemplo), os fotógrafos encontraram seus próprios meios de equiparar aos objetivos do poeta, de criar uma fotografia do maravilhoso pareada com o programa geral do distúrbio mental sistemático. Na maioria dos casos a influência de longo prazo dos Surrealistas significou pouco mais do que a criação de um senso ampliado do pitoresco, que tendeu muito freqüentemente a se rebaixar a mero capricho, como nas ‘distorções’ de Kertesz e de Brandt.

Divorciado de seu engajamento original com um programa político radical, as estratégias do Surrealismo podiam muito facilmente parecer como pouco mais que um gosto pelo bizarro em termos burgueses, um gosto que servia apenas, em última instância, para reforçar as expectativas e sentidos de normalidade que elas momentaneamente perturbavam. Esse era particularmente o caso dos países de língua inglesa, onde os mais importantes textos de Breton e de seus amigos permaneceram amplamente inacessíveis, deixando uma idéia generalizada do Surrealismo na semelhança de Dali e Magritte, em cujos trabalhos os meios do choque surrealista, e o dépaysement estão totalmente separados dos fins reconhecidos do movimento.

Em meados dos anos 1930 a assistente do estúdio de Man Ray, Berenice Abbott, levou para os Estados Unidos um grande número dos negativos de vidro de Atget, e, com isso, as sementes de uma prática fotográfica influenciada pelo Surrealismo que dominou a fotografia americana desde então. Suas fotografias de Nova Iorque nos mostra a cidade completamente reconstruída dentro dos cânones do gosto surrealista, drenada do valores Surrealistas. Nova Iorque é tornada estranha, mas é tornada estranha ao ser totalmente estetizada. Não há nada aqui de uma prática que emprega ângulos ‘incomuns’ ou sujeitos ‘misteriosos para revelar qualquer das contradições sociais que abundam em qualquer cidade grande, o mundo invisível dos ‘trabalhadores’’. Ao contrário, a metáfora dos seres humanos vistos como manequins, reduzidos à vida mecânica de autômatos pela demanda de um sistema social brutal, se torna simplesmente um gosto estético, um tema iconográfico para o historiador da arte ponderar a respeito. Ele não requer um sentido especialmente vigoroso de ironia para apreciar o modo pelo qual várias técnicas fotográficas, que tinham sido expressamente desenvolvidas para revelar a condição de vida alienada e a consciência se tornaram, elas próprias, em objetos para a contemplação estética alienada, um espelho estilhaçado que obedientemente continuou a refletir o mundo como ele não é.
Conclusão

Em todas as suas manifestações a estética do tornar estranho dependiam de uma imagem da consciência que era saturada pelos valores do Romantismo. Sua hostilidade ao costumeiro, a todas as formas fixas do hábito e do gosto, derivou de uma convicção de que nossas crenças sobre nós mesmos e sobre o mundo estão de algum modo intimamente relacionadas ao ato físico de ver. Ela considerou como sua sine qua non uma série de oposições duais – realidade/ilusão, consciente/inconsciente, liberdade/opressão – que eram resumidas na grande metáfora da Visão. De acordo com essa imagem, era amplamente suposto que qualquer idéia, na forma de uma imagem ou de uma palavra, pode ser temporariamente removida da prevalência da vida para ser higienizada, como um velho centavo, e colocada de volta em circulação. Uma suposição intimamente relacionada sustentava que os próprios órgãos da percepção, entendidos como os portais totalmente condicionadores do conhecimento, podem, semelhantemente, serem higienizados dos acréscimos mistificadores e enganosos que resultam da nossa experiência de um mundo corrupto e corruptor. Dentro dessa imagem a crença é percebida como consistindo de unidades, idéias e ‘hábitos’ discretos que podem, então, serem abordados individualmente. O eu pensante que necessita de tais idéias e hábitos permaneceu amplamente não teorizado, e era percebido em termos de uma noção tradicional de alguma natureza humana universal. Daí seu apelo imediatamente sedutor como uma teoria de intervenção política. Porque aqui estava a planta para a mudança social revolucionária que não considerou nada dos choque mútuos de classe, raça, sexualidade ou consciência. Nesse sentido toda a teoria do tornar estranho pode ser vista como tendo sido enraizada em uma abstração fundamentalmente burguesa do ‘pensamento’ do resto da vida material, com uma forte ênfase idealista na primazia determinante das idéias. Isso era a medida da dependência do tornar estranho de um conceito singularmente mecânico e redutivo do conceito de ‘ideologia’, ou daquelas crenças sobre o mundo que são aprendidas como se fossem fatos inquestionáveis da natureza.

Na sua forma mais simples, tornar estranho procurou chamar a atenção para contradições socioeconômicas que residem fora do escopo aceito do sujeito artístico. Como tal ele armazena na tradição geral da estética Realista. Entretanto, ele transcende essa tradição ao levantar a questão da tendência Realista a abstrair questões do sujeito daquelas da significação formal, abrindo assim uma rota para a análise semiótica contemporânea. Entretanto, em última instância, a própria teoria da desfamiliarização possuía uma vigorosa ideologia, um conjunto de suposições tácitas sobre as relações entre a arte e a sociedade. Acima de tudo, ela implicava que as contradições sociais podiam ser tornadas imediata e universalmente acessíveis ao olho, simplesmente por meios de surpresa visual. Entretanto, ela falhou completamente em dominar que nossa preconcepção, nossa ideologia, são basicamente determinadas por experiência social e histórica de ampla variação. Não se pode desfamiliarizar aquilo que não é, em primeiro lugar, familiar. O familiar não é nem uniforme nem heterogêneo. Portanto não é surpreendente que na prática as ferramentas da ‘ostranenie’ tendessem a se tornar reificadas, a se tornarem vistas como intrinsicamente ‘corretas’, em cujo ponto elas retrocederam para o maneirismo. Elas se tornarem vulneráveis tanto para aquele esteticismo Modernista que valoriza o inovador puramente em termos estilísticos para si mesmo, bem como aos elementos totalitários dentro da tradição Romântica que buscaria resolver todas as diferenças humanas, em nome da Arte, do Proletariado, da Verdade ou o que quer que seja. Assim o tornar estranho deixou de responder às demandas das situações históricas específicas, e desmoronou em estilização. No último contexto ele deu origem ao estilo retórico ‘olho de classe’ de muito da fotografia soviética oficial desde os anos 1930. No primeiro contexto ele forneceu o campo para toda uma geração de fotógrafos europeus e americanos cujas reputações foram construídas com base em suas visões do mundo ‘unicamente excêntricas’ ou, alternativamente, ‘unicamente insightful’. O dogma da foto-estética moderna relativa ao ‘olho vedor’ semi-mágico de fotógrafos tais como Kertesz e seu ex-aluno Cartier-Bresson, continuam firmes dentro dessa trajetória histórica maior. A noção de que a câmera pode ser forçada a revelar alguma fundação da realidade de outro modo invisível é central para essa ideologia, e continua a dominar o discurso da fotografia contemporânea, um gosto não reconhecido e não obstante especificamente construído, entendido como sendo a essência do meio.


Assim, quando Paul Nash escreveu seu desejo de criar ‘paisagens não vistas’ anteriormente e aplicou sua câmera naqueles sedutoramente vazios degraus, ele estava, com toda a certeza, respondendo à qualidade que Walter Benjamin percebeu nas fotografias de Atget, um gosto por sujeitos anônimos que era imediatamente familiar e não obstante não-familiar, uma vez que eles não tinham sido vistos previamente como objetos próprios para a fotografia. Assim, sua prática pode ser entendida como intimamente relacionada, através de seu conhecimento do trabalho tanto de Moholy-Nagy quanto de Man Ray, àquela geral ‘dominação surrealista da sensibilidade [fotográfica] moderna’[49] que Susan Sontag descreveu, e que continua a informar o trabalho de fotógrafos tão ostensivamente disparatados em pontos de vista como Diane Arbus e Lee Friedlander. Os crus paradoxos sociais de Arbus e os paradoxos espaciais elegantes de Friedlander exemplificam um amplo senso do visualmente ‘interessante’ que entretanto, não emerge simplesmente totalmente desenvolvido dos áticos do Surrealismo. É também diretamente relacionado ao fermento sóciopolítico da estética dos Futuristas russos. Isso sem duvida teria surpreendido Paul Nash aproximadamente há cinqüenta anos. Nós, entretanto, não aprendemos nada com aquela surpresa, apenas com nossa compreensão das condições históricas objetivas que a surpresa reconhece. Isso é o que a teoria e a prática do tornar estranho não podia reconhecer.



Isso porque toda a teoria da desfamiliarização se apoiava sobre a aceitação não-questionada da falácia que assume que a fotografia objetivamente reflete um mundo de aparências dado, adequado e totalmente compreensível. Considerando as fotografias como proposições, os teóricos e praticantes do tornar estranho eram incapazes de perceber que o significado não é constituído de unidades discretas, mas é, ao contrário, uma dialética infinita entre imagens sistematicamente construídas e sujeitos e instituições históricas. Nas Viagens de Gulliver pode-se ler os sábios de Baltnibarbi, que procuraram estabelecer um sistema universal de comunicação sem recorrer aos signos. Eles foram todos eventualmente quase esmagados debaixo do peso dos objetos que eram obrigados a carregar com eles para conversar. Swift fala aos sábios de reino de Tribnia, onde os próprios objetos são usados como signos: ‘uma cômoda-fechada para significar um conselho-privado; um bando de gansos, um Senado; um cão paralítico, um invasor; e assim por diante’.[50]A linguagem é reinventada. De modo muito semelhante aos sábios, tornar estranho tentou subverter todas as barreiras da discórdia sóciopolítica que eram entendidas como resultado de convenções de representação particulares. Não obstante tais barreiras não são simplesmente o produto de comunicações imperfeitas. No momento mesmo quando as convenções impregnadas de valor de uma cultura de classe estavam sendo energicamente desmanteladas e substituídas por aquelas de outra, os teóricos da ‘ostranenie’ foram enganados pela antiga noção de experiência pura não-mediada, e uma visão de algum meio neutro transparente pelo qual ela pode ser irradiada universalmente. Nós apenas traímos o espírito de otimismo inquisidor que acompanhou suas tarefas se permanecemos contentes em fetichizar um conjunto particular de ferramentas fotográficas que continuam a sustentar o mito tenaz de que a fotografia possui uma essência reveladora única, universalmente eficaz. Nós não devemos desperdiçar tempo procurando por aquela chave estratégica absoluta, uma vez que não existe nenhuma fechadura secreta para abrir. Nós podemos seguramente abandonar a busca Romântica por algum espelho fotográfico perfeito da realidade, uma vez que é claro que suas peças estão espalhadas através de todas as nossas vidas diversas.

Extraído de Watney, Simon, Making Strange: The Shattered Mirror; em BURGIN, Victor (ed), Thinking Photography; (MacMillan: Londres and Basingstoke, 1984).

Tradusido por Bruno M.Lima

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